Pelo menos 14 decisões judiciais estenderam o prazo do benefício fiscal do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), que teria acabado no dia 1º de abril, ao atingir R$ 15 bilhões de renúncia fiscal. Mas elas são minoria no Judiciário até agora. De 77 casos ajuizados envolvendo a Lei nº 14.589, de 2024, que impôs o fim do incentivo, o pedido dos contribuintes foi negado em 40 deles – alguns processos ainda não foram julgados. O levantamento foi feito pelos escritórios Ragazzi Advocacia e Veiga Law.
A disputa também já chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a lei de 2024. Para a entidade, a norma viola a Constituição, o Código Tributário Nacional (CTN) e precedentes do STF. Pede para que o fim do Perse seja suspenso até o julgamento de mérito da ação, além de estender o programa até, pelo menos, o ano de 2026 (ADI 7817).
São três teses principais defendidas pelos contribuintes. A primeira é que o Perse é equiparável a uma isenção tributária e, de acordo com a Súmula 544 do STF, não pode ser livremente suprimida, nem por outra lei. A segunda tese é de que o fim do benefício – alíquotas zero de Imposto de Renda (IRPJ), CSLL, PIS e Cofins – aumenta a carga tributária, o que enseja a aplicação da anterioridade, que veda a cobrança imediata de tributos majorados.
Aplicando a anterioridade, as contribuições só poderiam começar a ser exigidas em julho. Já o IRPJ em janeiro de 2026. Esse é o argumento que mais tem sido aceito por magistrados. Uma terceira alegação é a de que a Receita Federal não comprovou que foi atingido o teto de R$ 15 bilhões, como a lei exige.
Uma das decisões mais abrangentes foi dada em ação da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). A 4ª Vara Federal Cível do Distrito Federal concedeu liminar para estender o Perse “até o efetivo esgotamento do prazo de 60 meses previsto no artigo 4º da Lei nº 14.148/2021” (processo nº 1027337-87.2025.4.01.3400).
Já outra da 11ª Vara Federal Cível de Belo Horizonte, favorável à União Brasileira de Feiras e Eventos de Negócios (Ubrafe), prorroga o benefício até junho para as contribuições sociais e dezembro para o IRPJ. Vale para os associados em Minas Gerais – a entidade entrou com ações em vários Estados. O juiz diz que o restabelecimento antecipado das alíquotas dos tributos “constitui majoração indireta da carga tributária da contribuinte e, portanto, deve observar o princípio da anterioridade” (processo nº 6019200-54.2025.4.06.3800).
O Perse foi criado pela Lei nº 14.148/2021 para ajudar a soerguer empresas dos setores de eventos e turismo após a crise financeira gerada pela pandemia da covid-19. Zerou alíquotas de tributos federais por 60 meses, até março de 2027. Mas desde o início do programa o governo tem restringido o benefício, segundo especialistas. Exigiu o registro no Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos (Cadastur) e excluiu empresas do Simples Nacional e segmentos específicos.
As alterações mais recentes vieram com a Lei nº 14.589/2024 e, em março deste ano, com o Ato Declaratório Executivo nº 2 pela Receita, informando que se atingiu o limite de R$ 15 bilhões previsto no orçamento para o Perse. No relatório, o órgão diz, na verdade, que foi usado 85,6% desse montante até fevereiro de 2025 – o equivalente a uma renúncia fiscal de R$ 12,8 bilhões.
Para contribuintes, o governo não comprovou que o teto foi alcançado. Isso é questionado na ADI protocolada no Supremo, onde a CNC alega que a Receita não publicou os relatórios bimestrais para se acompanhar os custos com o programa. Até então, só foram publicados dois relatórios – de outubro de 2024 e março de 2025. Outro argumento da confederação é que o término do benefício no mês seguinte ao atingimento do limite de despesa viola a anterioriedade, prevista na Constituição.
Segundo Luís Eduardo Veiga, sócio-fundador do Veiga Law, existem ao menos cinco discussões sobre Perse no Judiciário. A mais recente, envolvendo o fim do programa em abril, tem poucas decisões. “As empresas foram se atentar agora no dia 15, que foi o primeiro mês que pagaram os impostos, de que o benefício acabou, então a maioria das ações ainda sequer foi julgada”, diz o advogado.
Veiga defende que o governo não explicou como se atingiu o teto de R$ 15 bilhões. “Não dá para entender a curva de crescimento. A briga dos contribuintes é para manter o Perse até 2027 ou, no mínimo, que a equipe econômica dê transparência para esses números”, afirma. “O governo andou muito mal nesse respeito, porque criou mais complexidade e contencioso.”
Segundo o advogado, a jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a revogação de benefícios fiscais é favorável aos contribuintes. Por isso, crê que o julgamento da controvérsia seja mais favorável lá do que no STF. “A matéria legal é o descumprimento do CTN e acho que é uma forçada de tentar pela via de inconstitucionalidade”, diz ele, citando que a atual composição do Supremo pode não favorecer as empresas.
Alessandro Ragazzi, do Ragazzi Advocacia, que atua pela Ubrafe em 14 ações, diz que a tese mais aceita no Judiciário hoje é a da anterioridade. Em Minas Gerais, a liminar foi concedida em parte. Em quatro Estados – Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pernambuco -, a liminar foi indeferida em primeiro e segundo graus. No Distrito Federal, São Paulo e Espírito Santo, a cautelar foi negada, mas foram interpostos recursos. Em quatro Estados, ainda não há decisão.
Para ele, o argumento mais forte é de que o Perse é equiparável a uma isenção fiscal. “Quando uma isenção é dada por prazo certo e sob determinadas condições, não pode ser revogada nem por outra lei. O prazo certo era o de 60 meses e a condição é que as empresas tenham sido prejudicadas pela pandemia e o próprio fato de só valer para determinados CNAEs, já é uma condição específica”, afirma.
O tributarista João Henrique Domingos, do Brasil Salomão e Matthes Advocacia, também entende como outras condições o cadastramento no Cadastur e o cumprimento de obrigações impostas pelo Fisco. Ele conseguiu recentemente decisão favorável a um restaurante de São José do Rio Preto para que a empresa fique no programa até o julgamento do mérito da ação (processo nº 5002450-44.2025.4.03.6106).
“O que chamou atenção é que o juiz fala que não há como controlar os R$ 15 bilhões. Ele faz uma analogia que é como se cobrar tributo até arrecadar determinado montante”, diz. De acordo com Domingos, tem sido padrão da Fazenda Nacional, afirmar no processo que o teto foi atingido e não há mais orçamento para a manutenção do Perse. “Mas pela conduta do juiz, acreditamos que a segurança será concedida”, completa.
Em nota, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) diz “ser plenamente legal o encerramento do Perse pelo atingimento do custo total de R$ 15 bilhões, por decorrer de previsão expressa contida no artigo 4º-A da Lei nº 14.148/2021, incluído pela Lei nº 14.859/2024”. Afirma ter identificado “uma série de decisões judiciais liminares favoráveis à União em todos os Tribunais Regionais Federais” e que “o panorama é majoritariamente favorável à legalidade do encerramento do programa com base na nova redação legal”, mas não forneceu números. Sobre as derrotas em ações, informa que irá interpor recursos.
Procurada pelo Valor, a Receita Federal não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Fonte: Valor Econômico