A reforma tributária, cujo foco recai majoritariamente sobre o consumo, deve gerar efeitos também no campo trabalhista — ainda que de forma indireta. Com o início da transição em 2026, as empresas já começam a se preparar para as novas regras, geralmente lideradas pelos departamentos de tax e fiscal, mas pode ser necessário que a área de Recursos Humanos se atente também desde já.
Um exemplo é que, a partir do início da transição, a tomada de crédito de IBS e CBS (Imposto sobre Bens e Serviços e Contribuição sobre Bens e Serviços, que substituirão PIS, Cofins, ICMS, ISS e parte do IPI) dependerá da forma como os gastos são caracterizados. E, no caso de benefícios trabalhistas concedidos aos empregados, como plano de saúde, vale-alimentação ou transporte, só será possível aproveitá-los como crédito se estiverem expressamente formalizados em normas coletivas de trabalho, seja a convenção coletiva firmada entre sindicatos dos trabalhadores e sindicatos patronais, ou acordo coletivo de trabalho, feito entre sindicatos e determinada empresa.
“Basicamente, a empresa só vai poder usar esse imposto como crédito se o benefício estiver previsto em convenção ou acordo coletivo de trabalho”, explica a advogada Mariana Brassaloti Ronco, sócia de trabalhista do Martinelli Advogados. “Mesmo em setores com sindicatos fortes, como bancários ou metalúrgicos, pode haver benefícios fora do padrão do setor, e eles precisarão de negociação específica. Já em setores com representações sindicais mais frágeis será necessário formalizar até mesmo os benefícios mais básicos”, afirma.
E pode ser necessário que empresas se movimentem desde já para garantir que não sejam surpreendidas quando a reforma já estiver em andamento. Isso porque os acordos e convenções coletivas têm vigência, geralmente, de dois anos — e, se forem assinados em 2025 sem prever os benefícios, não será possível recuperar retroativamente os créditos em 2027, quando o novo sistema já estiver plenamente em vigor. “Se esses pontos não forem considerados agora, as empresas vão ter que negociar lá na frente um aditivo ou iniciar uma nova negociação coletiva, que é um dispêndio de trabalho e de tempo”, diz Brassaloti. “Não dá para fazer norma coletiva retroativa. E aí pode ser tarde demais para recuperar créditos tributários que ficaram para trás”.
A renovada importância das convenções suscita também um novo cenário para sindicatos. “Temos visto um movimento para valorizar a negociação sindical, o que vai na contramão da reforma de 2017. Quem diria isso há alguns anos?”, diz Elisa Alonso, sócia trabalhista do RCA Advogados. Sancionada durante o governo Michel Temer, a reforma trabalhista extinguiu a contribuição sindical obrigatória, além de restringir a atuação jurídica dos sindicatos ao exigir que eles obtivessem autorização expressa dos trabalhadores para entrar com ações trabalhistas coletivas.
Mas as mudanças trazidas pela reforma tributária podem significar um impulso nos caixas das organizações. “Para negociar um acordo coletivo, as empresas vão ter que acionar os sindicatos, e muitas vezes há cobrança de taxa negocial. Isso tende a trazer mais recursos para eles”, diz Brassaloti Ronco, do Martinelli. Em 2017, último ano em que a contribuição sindical foi obrigatória, os sindicatos arrecadaram R$ 3,05 bilhões. Com a mudança, esse valor caiu para R$ 65,5 milhões em 2021, um tombo de 97,5%. A Central Única dos Trabalhadores (CUT), por exemplo, viu sua arrecadação cair de R$ 62,2 milhões em 2017 para R$ 274 mil em 2021, segundo dados do Ministério do Trabalho.
A mudança em relação aos benefícios pode também ser mais difícil de operacionalizar em pequenas e médias empresas, com equipe mais enxuta. Apenas metade das companhias com até 199 funcionários contam com algum sistema de RH e Departamento Pessoal (DP), e, mesmo assim, ainda não atuam com políticas de recursos humanos formalizadas ou com estratégia de gestão de talentos, segundo uma pesquisa da HRTech Mindsight publicada em 2023. “Essas empresas muitas vezes nem têm uma área de RH formal, e o relacionamento com sindicato é mais difícil. Então há mais risco de perder crédito por falta de formalização”, diz Elisa Alonso.
Ainda há outros pontos de dúvida. A legislação que embasa o sistema de créditos menciona explicitamente alguns tipos de benefícios mais tradicionais, mas não contempla diretamente benefícios mais recentes e “híbridos”, como aplicativos de bem-estar, como Wellhub e TotalPass, hoje oferecidos por muitas empresas. A tomada de crédito sobre eles ainda depende de regulamentação futura, diz Virgínia Pillekamp, sócia de Tributário do BMA Advogados. “É necessário ainda levantar todas essas situações”.
Para a advogada, há risco de judicialização do tema. Pillekamp entende que, ao restringir o direito ao crédito com base em uma concepção excessivamente limitada de insumo, especialmente para benefícios oferecidos a trabalhadores, a regulamentação da reforma tributária pode ter extrapolado os limites constitucionais. Isso contraria a lógica de crédito amplo e não cumulativo prevista na Emenda Constitucional 132/2023. “A Constituição prevê crédito amplo sobre bens e serviços utilizados na atividade do contribuinte, a exclusão de insumos ligados ao trabalhador como sendo de ‘uso pessoal’ é uma construção da lei complementar”, afirma. “Deu um ranço fiscalista na Constituição. Se a empresa concedeu um benefício essencial à sua atividade, mas isso não estava em convenção, pode haver espaço para questionamento judicial”.
Pejotização
Outra possível consequência da reforma está na pejotização. A depender da forma como o IBS e a CBS forem regulamentados, empresas que contratarem prestadores de serviço como pessoa jurídica (PJ) poderão aproveitar créditos, o que não é possível com os encargos decorrentes de vínculos CLT. Já há, no entanto, a interpretação a partir da emenda constitucional e da lei complementar aprovadas de que as empresas poderão se creditar dos tributos pagos na aquisição de bens e serviços. Isso significa que, ao contratar um prestador de serviços PJ, a companhia poderia abater o valor dos tributos pagos nessa contratação do total de impostos devidos.
“Temos insegurança jurídica dos dois lados em torno do tema: como isso vai ficar com a reforma, e o que vai acontecer com os processos suspensos pelo Supremo”, diz Pillekamp. Recentemente, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes determinou a suspensão nacional de todos os processos que tratam da licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços. O decano do STF afirmou que o tema pode ser julgado no segundo semestre.
“Do ponto de vista financeiro, pode ser, sim, que haja também um incentivo financeiro com a reforma”, diz Elisa Alonso. “Mas o risco trabalhista permanece”. Em 2024, a Justiça do Trabalho registrou cerca de 285 mil ações que solicitam o reconhecimento de vínculo empregatício, muitas delas associadas a casos de pejotização. Esse número representa um crescimento de mais de 50% em relação a 2023, quando foram registrados 180.642 processos desse tipo.
Planejamento
Outro ponto está na contribuição previdenciária patronal, que não poderá ser paga com créditos de IBS ou CBS. “A folha de pagamento passa a ser um dos poucos espaços em que a empresa ainda pode atuar para buscar eficiência fiscal”, diz Mariana Brassaloti, do Martinelli. “É provável que vejamos um aumento na procura por revisões previdenciárias, para entender o que pode ou não incidir. Por exemplo, prêmios pagos a empregados, que não têm incidência de INSS se obedecerem certos critérios, podem ganhar força nesse contexto”.
Essas e outras alterações vindas com a reforma tributária transformam o ambiente corporativo, exigindo maior integração entre as áreas fiscal, jurídica e de recursos humanos nas empresas. “Hoje, a parte fiscal discute a reforma separada do jurídico. E o jurídico, por sua vez, muitas vezes não chega ao trabalhista. Mas o que está em jogo aqui depende da execução trabalhista: entender quais benefícios são concedidos, o que está formalizado, o que não está, e negociar adequadamente”, diz Brassaloti.
Segundo Virgínia Pillekamp, do BMA, mesmo sem regulamentação final, as empresas já podem iniciar o mapeamento dos benefícios concedidos aos empregados, revisar estruturas de contratação e simular impactos fiscais, para evitar perdas de crédito tributário e surpresas de última hora. “É difícil planejar esperando a regulamentação, muitas vezes os clientes não conseguem”, diz. “Mas o que tenho falado é: vamos fazer um trabalho aqui para verificar qual é a nossa situação, tentando dar um alívio lá na frente”.
Fonte: Jota