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O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) começou a dar prioridade à movimentação dos processos aduaneiros passíveis de prescrição intercorrente que estão próximos de completar três anos no tribunal. A intenção do presidente do conselho, Carlos Higino Ribeiro de Alencar, é acelerar a distribuição para que os casos sejam incluídos em pauta e posteriormente sobrestados, de modo a interromper o prazo prescricional.

O movimento ocorre após a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Tema 1.293, que reconheceu a aplicação da prescrição intercorrente, que ocorre quando um processo permanece parado por mais de três anos sem decisão ou despacho relevante, às infrações aduaneiras de natureza administrativa (e não tributária). Ou seja, com o entendimento da Corte superior os processos relacionados ao controle de trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro parados há mais de três anos podem ser encerrados.

A tese foi fixada em março, por unanimidade, no julgamento dos REsp 2.147.578/SP e 2.147.583/SP, julgados como repetitivos. Prevaleceu o voto do relator, ministro Paulo Sérgio Domingues, que entendeu pela aplicação de prescrição intercorrente nos casos em que o processo envolvendo apuração aduaneira, de natureza não tributária, permanecer paralisado por mais de três anos. Os ministros também definiram que a prescrição não se aplica nos casos em que a infração, ainda que ocorrida em contexto aduaneiro, estiver relacionada à arrecadação ou fiscalização de tributos.

Segundo dados do Ministério da Fazenda, ao menos 3.405 processos no Carf que tratam de matéria aduaneira completarão três anos até julho. Isso, porém, não significa que todos serão atingidos pelo entendimento da Corte, já que muitos envolvem também questões tributárias, às quais a tese do STJ não se aplica. A expectativa é que os conselheiros analisem cada caso individualmente, verificando se o processo envolve questões tributárias ou se de fato trata exclusivamente de matéria aduaneira.

Segundo explicou o presidente da 3ª Seção de Julgamento do Carf, Régis Xavier Holanda, a decisão do STJ não se aplica a todas as multas existentes. Isso porque, na origem, os recursos analisados pelo STJ tratavam especificamente da penalidade prevista no artigo 107, inciso IV, alínea “e”, do Decreto-Lei nº 37/66. O dispositivo trata da infração por deixar de prestar informações, ou prestá-las fora do prazo, sobre a chegada de mercadorias ou veículos, na forma e prazo estabelecidos. Até o momento, essa é a única multa aduaneira cuja natureza administrativa foi expressamente reconhecida pelo STJ, segundo Holanda, ainda que o texto da tese aprovada não mencione essa ou outras penalidades.

“Para cada multa aduaneira a gente vai ter uma discussão no colegiado se a multa aduaneira se enquadra no controle de trânsito de mercadoria ou regularidade do serviço aduaneiro. Se enquadrar nisso, será enquadrada como uma multa de natureza adminsitrativa e vai incidir [a prescrição intercorrente]”, disse.

De acordo com ele, atualmente há 102 processos com risco de prescrição parados no Carf há entre dois e três anos, aguardando distribuição. Em abril, esse número era de 159. A expectativa é zerar esse estoque até o fim deste mês, com a inclusão desses casos como prioridade na pauta, mesmo os que envolvam múltiplas matérias. Nesses casos, bastando que uma delas seja passível de prescrição, todo o processo será sobrestado.

No âmbito do Carf, o artigo 100 do Regimento Interno determina o sobrestamento dos processos quando há acórdão de mérito no STF ou no STJ ainda pendente de trânsito em julgado. É o caso do Tema 1.293, que conta com embargos de declaração ainda não analisados.

“A ideia hoje é evitar que processos de multa aduaneira completem os três anos. Então, está sendo priorizada a formação de lote desses processos e distribuídos aos conselheiros. A gente vai julgar uma parte grande desses processos, seja nas turmas ordinárias, seja nas turmas extraordinárias”, disse Holanda.

Apesar do esforço do Carf em dar prioridade a esses processos, a paralisação dos conselheiros fazendários, em razão da greve dos auditores fiscais, compromete a efetividade do pedido. Embora o conselho faça um esforço concentrado para sortear e distribuir os processos de maior risco, a tramitação depende da indicação do relator para inclusão em pauta de julgamento. Esse passo, portanto, fica inviabilizado nos casos que recaem sob responsabilidade dos conselheiros fazendários.

A presidência do Carf tem reforçado o pedido para que esses processos sejam pautados com urgência, ainda que em sessão extraordinária (por conta da greve), nos casos que caibam nesse formato, mas admite que, diante da paralisação, muitos devem acabar ultrapassando o prazo de três anos. Em nota técnica à qual o JOTA teve acesso, a administração do Carf reafirma a necessidade de sobrestar os processos afetados pela tese, a fim de evitar a prescrição.

O conselheiro Laércio Uliana, da 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção, destacou que o simples andamento processual não basta para afastar a prescrição. Para ele, é necessário que haja um ato com caráter decisório, como um julgamento ou despacho de mérito. O sobrestamento dos processos, por exemplo, diz, ao ser deliberado pelas turmas, possui esse caráter decisório e, por isso, também pode ser considerado como interrupção da prescrição.

Natureza das multas
Apesar da tese fixada pelo STJ, alguns pontos precisam ser enfrentados pelo Carf após o trânsito em julgado do Tema. O principal deles é definir, na prática, quais multas têm natureza administrativa, e admitem a prescrição, e quais têm natureza tributária, e a prescrição não se aplica.

Segundo o presidente da 3ª Seção do Carf, uma infração aduaneira é considerada tributária quando está relacionada à arrecadação ou à fiscalização de tributos, e não ao controle do trânsito internacional de mercadorias. Holanda afirma que, atualmente, há 78 tipos diferentes de multas aduaneiras que precisarão de análise nos colegiados.

“A única multa com definição objetiva até agora é a do artigo 107, inciso IV, alínea ‘e’, que foi objeto dos dois recursos julgados. Nas demais, será necessário avaliar concretamente a natureza da sanção. A única segurança que a gente tem do enquadramento do STJ de uma multa aduaneira de característica administrativa e não tributária é essa”, disse ao JOTA.

Para o presidente do conselho, Carlos Higino, a quantidade de processos aduaneiros afetados pela prescrição intercorrente será relativamente pequena. Segundo ele, o debate se concentra nas sanções que não têm natureza tributária, e nos casos em que a penalidade estiver vinculada à arrecadação de tributos, a aplicação da prescrição será excluída. Assim, disse, a discussão será para identificar essas situações específicas.

Segundo o advogado Carlos Augusto Daniel Neto, do escritório Daniel & Diniz, algumas discussões podem se tornar mais sensíveis em relação ao enquadramento de determinadas penalidades, como a de interposição fraudulenta, por exemplo, o que exigirá das turmas uma análise mais criteriosa sobre o objetivo da multa.

Marco da prescrição
Outro ponto ainda em aberto diz respeito ao marco da prescrição e, em especial, à definição dos atos processuais que podem interromper o prazo de três anos. Embora haja consenso de que decisões com caráter definitivo interrompam esse prazo, não está claro nem para o presidente do Carf, Carlos Higino, nem para o presidente da 3ª Seção, Régis Holanda, se a distribuição do processo, por exemplo, seria o suficiente para isso. Ambos reconhecem que essa será uma questão que deverá ser discutida pelas turmas durante o julgamento dos casos.

Para o presidente do conselho, aplica-se a prescrição em processo com três anos sem movimentação, ao menos que ele tenha sido distribuído. “Se você olhar o detalhe, não é três anos para julgar [..] a lei de prescrição não fala em três anos para conclusão”, comentou. Conforme ele, a análise deve ser feita processo a processo, embora “tenha algumas coisas que são indiscutíveis”.

Holanda explicou que existem outras decisões que são certificadas ao sujeito passivo, que, na sua visão, também poderiam interromper o prazo prescricional. “Quando você decide uma admissibilidade do Resp [recurso especial, endereçado à Câmara Superior do Carf], isso é um certificado ao sujeito passivo, é uma decisão. Isso aí me parece que claramente estaria abarcada como uma possibilidade de interrupção. Também quando você decide embargos de declaração, ou a própria admissibilidade dos embargos. Me parece que essas decisões, que geram uma certificação ao contribuinte e uma possibilidade de manifestação, também seriam causas interruptivas”, disse.

Segundo o advogado Paulo Eduardo Mansin, do Lunardelli Advogados, a legislação atual não define de forma clara se atos como o sobrestamento, a distribuição ou outras movimentações intermediárias seriam suficientes para interromper o prazo de prescrição intercorrente. Na visão dele, a tendência é que essas interpretações sejam mais favoráveis aos contribuintes, considerando apenas atos voltados à solução do litígio, como julgamentos ou decisões de mérito passíveis de interromper o prazo.

É o que diz também o advogado tributarista Fernando Pieri Leonardo, do HLL & Pieri Advogados. Segundo ele, para efeitos de interrupção da prescrição intercorrente apenas são válidos atos com conteúdo decisório, como despachos e/ou julgamentos e, portanto, simples movimentações processuais sem manifestação de mérito não são aptas a afastar o prazo.

Modulação e STF
Apesar de o STJ não ter modulado os efeitos da decisão no Tema 1.293, o Carf considera a possibilidade de que isso ainda ocorra a partir de embargos de declaração. Para o presidente do conselho, a modulação seria fundamental para trazer previsibilidade e permitir que o Carf tenha um prazo adequado para julgar os processos afetados.

Alencar também não descarta a possibilidade de que a discussão acabe chegando ao Supremo Tribunal Federal (STF). “Se houver recurso, teremos que acompanhar os desdobramentos. Mas, por ora, seguimos aguardando o trânsito em julgado no STJ para aplicação da tese”, afirmou​.

Há embargos apresentados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) no Tema 1293, mas eles não tratam de modulação. O pedido da Fazenda é que o prazo de três anos previsto na Lei 9.873/1999 só comece a contar após os 360 dias estabelecidos na Lei 11.457/2007 — tempo que a administração tem para analisar e decidir manifestações apresentadas pelos contribuintes em processos administrativos. Na prática, a interpretação postergaria o início da contagem da prescrição, o que reduziria o alcance imediato da decisão. O pedido segue pendente de análise. As partes já se manifestaram, e o processo aguarda deliberação do relator.

Pieri Leonardo avalia que o artigo 24 da Lei 11.457/2007, citado pela PGFN nos embargos, trata de pedidos administrativos como restituição ou compensação, e não de processos de contencioso fiscal em curso na Delegacia da Receita Federal de Julgamento (DRJ) ou no Carf. Segundo ele, o dispositivo nunca foi aplicado a processos com tramitação nesses órgãos e não há embasamento técnico para utilizá-lo. “São natureza jurídica de normas diferentes com objetivos diferentes. A probabilidade é de não conhecimento”, disse.

Fonte: Jota