Cerca de um terço dos gastos tributários no Brasil tem algum caráter constitucional, o que limita o corte pelo governo e torna a tarefa bastante complexa. Mesmo que foque gastos infraconstitucionais, como já indicou, especialistas dizem ver riscos de judicialização.
A partir da base efetiva de 2022, a Warren Investimentos calcula que 13% dos gastos tributários são constitucionais na sua integralidade. É o caso de isenções para entidades sem fins lucrativos em saúde, assistência social e educação ou filantrópicas. Considerando também o Simples Nacional, que inclui partes constitucionais, essa participação sobe 33%.
Felipe Salto, economista-chefe da Warren, prefere falar em gastos tributários mais ou menos “cortáveis”. Dos R$ 544,5 bilhões previstos em gastos tributários para este ano, ele estima que cerca de metade é “cortável”. Uma redução de 10% nessas isenções poderia levantar R$ 21 bilhões para a União em 2026, estima Salto.
O governo já sinalizou que o corte linear seria em gastos tributários infraconstitucionais. A apresentação que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fez a membros do Congresso no domingo cita como exceções “Simples, cesta básica, imunidades e entidades sem fins lucrativos”. Procurado, o ministério não se manifestou.
O assunto, no entanto, ainda pode levar a judicialização, na avaliação de Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre). “Ele descartou o que tem base constitucional de cara para evitar ruídos maiores. Mas o que é constitucional e o que não é, dado o que a Constituição prevê e o que não prevê? Vai ter gente alegando inconstitucionalidade da medida em função do eventual benefício dela estar previsto de alguma forma na Constituição”, diz. “Alguns gastos tributários estão definitivamente na Constituição, como a Zona Franca de Manaus (ZFM). Mas alguns estão meio amorfos. Por exemplo: no caso do Simples, a a Constituição prevê a existência de um sistema tributário simplificado. Toda a legislação do Simples está na lei complementar. Outros casos não são controversos, como o Regime Especial da Indústria Química (Reiq), que não está na Constituição”, exemplifica Pires.
Mas mesmo casos aparentemente incontroversos, como a ZFM, são complexos, diz. “Uma parte da ZFM é identificada como sendo base constitucional ligada ao imposto de importação e IPI [imposto sobre industrializados] e outra parte ligada ao PIS/Cofins, que não tem essa previsão constitucional. Isso, muito provavelmente, vai gerar insegurança jurídica.”
Economistas têm dúvidas ainda sobre o tratamento dado a isenções previstas na Emenda Constitucional 109, de 2021, a PEC Emergencial. A emenda foi promulgada no governo de Jair Bolsonaro para autorizar o pagamento de um auxílio em meio à pandemia. Como contrapartida, o governo ficou obrigado a encaminhar um plano reduzindo benefícios tributários a 2% do PIB. A EC garantiu, porém, algumas isenções, como para cesta básica e programas de concessão de bolsas de estudo em cursos superiores (Prouni). “Tem uma discussão: as isenções que estão lá constitucionalizaram os benefícios expressamente mencionados?”, questiona Pires.
O Itaú Unibanco prefere não contar com essas fontes nem com eventuais mudanças em deduções (de saúde e educação) e rendimentos isentos do Imposto de Renda da Pessoa Física. Excluindo itens de “maior resistência” – sendo que 38% dos gastos tributários previstos para 2025 são constitucionais, segundo o Itaú -, o banco estima que um corte linear de 10% pode gerar economia potencial de até R$ 16 bilhões no ano.
“Fazer esse debate de forma infraconstitucional me parece difícil. Segundo contas preliminares, aproximadamente um terço dos gastos tributários tem fundo constitucional. Como vamos rever um benefício de forma infraconstitucional se ele está constitucionalizado? Me parece que não conseguimos entregar uma economia em 2026”, afirmou Natalie Victal, economista-chefe da SulAmérica Investimentos, na segunda no evento “Agenda Brasil – o cenário fiscal brasileiro”, promovido pelo Valor, pela rádio CBN e pelo jornal “O Globo” no Insper, em São Paulo.
Pires diz que, do ponto de vista do mérito, o governo tem razão em propor cortes em gastos tributários. Mas, do ponto de vista operacional e prático, ele afirma achar difícil fazer uma lei que dê segurança jurídica a uma redução linear. “Por exemplo: uma empresa que tem isenção ou crédito presumido ligado a PIS/Cofins, vai reduzir o benefício em relação a que, ao regime cumulativo ou ao valor adicionado?”, questiona. “Temos de ver exatamente como a lei vai tratar isso, se vai conseguir cobrir de maneira adequada todos os gastos que deseja alterar, se vai ter base legal confiável. Eu concordo com a redução do gasto tributário, mas dá para pensar em várias formas de judicializar da maneira como o governo parece estar propondo. Esse é um trabalho técnico jurídico que eu acho bastante complexo e que vai exigir muita atenção”, afirma.
Fonte: Valor Econômico