O Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) é membro honorário do “caos fiscal” brasileiro. Ele vigora hoje sob quatro siglas distintas (ICD, ITD e ITCD são as outras), com 27 configurações de alíquotas a depender do estado e progressividade igualmente a critério da lei estadual.
A discussão sobre o ITCMD, no entanto, não se encerra no tema das alíquotas. Sua base de cálculo também vive exposta à estratégia do fisco em busca de um valor que pode mudar estado a estado. Não à toa, o imposto é um dos próximos alvos da reforma tributária, em nome da centralização e uniformização nacional. Em suma, da segurança jurídica.
Aprovado pela Câmara dos Deputados, o novo texto sobre o ITCMD espera a apreciação do Senado Federal. É parte relevante do Projeto de Lei Complementar 108/2024, que também trata do Comitê Gestor do IBS e do julgamento administrativo do tributo. A reforma também é regulamentada pelo PLP 68/2024, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados em dezembro e aguarda sanção.
Como o PLP 68/2024 – que regulamenta o IBS/CBS e trata dos regimes específicos e do Imposto Seletivo –, o PLP 108/2024 é um avanço infraconstitucional para a reforma tributária promulgada com a Emenda Constitucional 132/2023. No caso do ITCMD, antes regrado livremente pelos estados, pelo silêncio do Código Tributário Nacional (CTN) e eventualmente pela jurisprudência, agora, em nome da segurança jurídica, uma lei complementar tratará também dele.
O diabo, no entanto, vive na interpretação. Neste caso, de um novo aspecto de sua base de cálculo que não é “detalhe” para o empresário, especialmente aquele à frente de empresas de capital fechado: determinar o valor de sua participação acionária para a transmissão desse direito em caso de doação ou herança, com a sua consequente tributação.
“Antes da reforma, os fiscos já buscavam trazer a valor de mercado essas ações e quotas, o que gerava alguma distorção ao contribuinte”, diz Waleska Pozzani, sócia de Direito Tributário do escritório Mattos Filho. “O PLP 108 confirma essa orientação, mas ainda deixa os fiscos estaduais livres para adotar a metodologia que vai definir esse valor de mercado”.
De fato, o artigo 173 do PLP 108 crava, em sua última redação, que “a base de cálculo do ITCMD é o valor de mercado do bem ou do direito transmitido”. No caso da empresa de capital aberto com ação negociada em bolsa de valores, por exemplo, a base de cálculo do ITCMD passa a ser a cotação das ações no dia anterior à avaliação. Ponto pacífico.
Qual a razão da inquietação do contribuinte frente à nova regra?
A controvérsia, no entanto, permanece quanto às empresas de capital fechado. É quando há notória dificuldade de medir o valor das ações. Seja pela ausência de precificação explícita, seja pelo conflito de expectativa entre os atores econômicos, que em uma operação societária cultivam interesses bem diferentes do que se esperaria do fisco em uma avaliação.
A solução escolhida pelo legislador foi estabelecer, no artigo 175, inciso II do PLP 108, que o fisco deve calcular o “valor de mercado” de ações e quotas de pessoa jurídica (ou do empresário individual) com base em “metodologia tecnicamente idônea e adequada”. Em tese, regra prudente.
O texto não especifica uma metodologia, mas estabelece o “patrimônio líquido ajustado” da empresa como espécie de piso mínimo para a base de cálculo. E acrescenta outros elementos pontuais a considerar nessa avaliação, como “perspectiva de geração de caixa”, “avaliação de ativos e passivos” e até mesmo o “valor de mercado do fundo de comércio”.
“Esse é o problema. Em vez de uniformizar, você abre um leque de subjetividade absurda para o fisco”, afirma Pozzani, do Mattos Filho. A inquietação do contribuinte tem suas razões, jurídicas e contábeis.
A primeira delas é que a base de cálculo do ITCMD, costumeiramente, orientou-se pelo “valor patrimonial” da empresa, medida contábil razoavelmente simples que permite determinar o valor da ação dividindo-se o patrimônio líquido da empresa pelo total de ações. No caso de patrimônio líquido negativo, por exemplo, sequer há tributação.
Fiscos estaduais como o de São Paulo, por exemplo, têm um histórico de reavaliação do patrimônio líquido de empresas, com base em portaria. Para evitar a não tributação de um patrimônio líquido negativo, por exemplo, um dos caminhos foi usar o capital social da empresa como base de cálculo do ITCMD. Outra estratégia é reavaliar bens do ativo imobilizado que, na contabilidade da empresa, possuem valor baixo.
Pela nova regra, o fisco vai oficialmente buscar o “valor de mercado”. O uso de “metodologia tecnicamente idônea e adequada” sugere que o horizonte da nova regra pode ser o chamado “valor justo” das ações e quotas, outro conceito contábil que, para além do simples “valor patrimonial”, amplia significativamente as ferramentas de avaliação.
Tecnicamente, o “valor justo” é definido pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) como aquele alcançado a partir das mesmas “premissas que os participantes do mercado utilizariam ao precificar o ativo ou o passivo, incluindo premissas sobre risco”. Noutras palavras, o “valor justo” é mais amplo. Usa como referência o “valor de mercado”. Ou vários deles.
Para isso, há distintas técnicas. Caso do fluxo de caixa descontado (no qual o valor da empresa ou ativo é calculado com base em fluxos de caixa futuros) ou do múltiplos de mercado (em que são comparados indicadores de empresas semelhantes). São técnicas, sem dúvida, “idôneas e adequadas”, reconhecidas e habituais em operações societárias.
“Mas isso pode ser um problema. O fisco está preparado para fazer esse tipo de avaliação?”, diz Christian Lopes, sócio do VLF advogados. “Quem já participou de negociações de M&A sabe que você pode ter um método, mas vários itens dessa fórmula contém uma carga de subjetividade grande, que é a aposta do empresário na empresa que quer comprar”.
Lopes cita um caso. “Numa operação recente com uma rede varejista, havia um comprador que não queria pagar nem o preço do patrimônio da empresa. Porque sua lucratividade estava ruim. Mas quem compra confia num choque de gestão para trazer o lucro de volta”. O exemplo sugere que a avaliação do valor de uma empresa de capital fechado sempre parte das metodologias, mas é ajustada durante a negociação de fato.
“A nova regra diz que o fisco deve simular uma operação de mercado, mas sem o mercado”, diz Lopes. “O fisco quer ficar com o melhor de todos os mundos. Pode fazer a avaliação pelo patrimônio líquido, também pode fazer pelas metodologias de mercado, e só então vai escolher”.
A controvérsia, portanto, não se limita à troca do antigo “valor patrimonial” pelo novo “valor de mercado” como referência, já que a nova regra do PLP 108 permite ao fisco usar o primeiro como piso e o segundo com liberdade. A complexidade continua. Está na escolha da metodologia, em suas possíveis combinações, e numa infinidade de variáveis: taxas de desconto, fatores de risco, custos e despesas, ações do bloco de controle, ativos intangíveis, patentes de novas tecnologias, dentre outras.
Exemplos são úteis para constatar a complexidade. “Avaliar uma startup olhando para patrimônio, por exemplo, não faz sentido. Para uma construtora com banco de terrenos, vale considerar o valor patrimonial e o fluxo de caixa descontado. E o valor de mercado do fundo de comércio? É subjetivo. Há quem projete ele dentro do fluxo de caixa”, diz Lopes.
Que tipo de empresa será mais afetada com a nova regra do ITCMD?
“Em tese, todas as empresas serão afetadas. Mas a nova regra tem, digamos, algumas vítimas certas”, afirma Priscila Mariano da Silva, consultora do escritório Pinheiro Neto. “Holdings imobiliárias, por exemplo, que possuem muitos terrenos. Ou seja, imóveis que ficam ali parados e que certamente estão subavaliados”.
Neste caso, “o fisco precisará olhar para dentro da holding e descer em sua estrutura para avaliar o valor de mercado dos ativos. É bem complexo”. Do ponto de vista do contribuinte, outro ponto do PLP 108 torna esse tipo de procedimento de avaliação particularmente difícil.
A razão? O legislador definiu, no parágrafo segundo do artigo 182 do projeto de lei, que o ITCMD “será devido, proporcionalmente, ao estado onde situado cada respectivo bem imóvel”, em caso de transmissão de participação acionária de empresas de capital fechado.
O artigo foi redigido com a finalidade de garantir uma melhor distribuição da receita do imposto e evitar perda de arrecadação causada pela eventual constituição da holding num estado de legislação tributária mais favorável, uma opção legítima de planejamento patrimonial e sucessório bastante comum a holdings patrimoniais familiares.
Com a mudança, o imposto, que antes era cobrado unicamente pelo estado de domicílio do sócio da holding, passará a ser cobrado por todos os estados onde se encontrarem os imóveis. Logo, por uma série de legislações estaduais, sob metodologias à escolha de cada uma delas.
É um exemplo de dificuldade que vai na contramão da centralização e da uniformização esperadas da nova lei complementar que impacta o ITCMD. Embora a regulamentação seja bem vinda, as críticas sugerem que a subjetividade na escolha das metodologias, com todos os seus desdobramentos, gera insegurança jurídica para o contribuinte.
“Se a regra passar dessa forma, vai gerar um contencioso tributário, administrativo e judicial, bastante grande em torno de avaliação de empresa para ITCD”, diz Christian Lopes, do VLF Advogados, referindo-se ao imposto em Minas Gerais. Um receio, na prática, é que essa gama de opções à disposição do fisco “aumente” a base de cálculo do tributo.
“O projeto de lei tem um ponto de vista fiscalista”, diz Priscila Mariano da Silva, do Pinheiro Neto. “Mas também tem pontos positivos. Por exemplo, o artigo 176 permite a dedução das dívidas do falecido da base de cálculo do imposto, o que não era possível e foi bastante judicializado”.
Quais são os próximos passos da tramitação do PLP 108?
O Projeto de Lei Complementar 108/2024 tramita no Senado Federal desde 12 de novembro. Ainda não há previsão para a discussão de seu conteúdo. A depender das alterações feitas pelo Senado, o PLP 108 ainda pode voltar à Câmara.
Fonte: Jota